sexta-feira, outubro 28, 2011

A acrobata

Luz Marina Acosta era menininha quando descobriu o circo Feruliche.
O circo Feruliche emergiu certa noite, mágico barco de luzes, das profundidades do Lago da Nicarágua. Eram clarins guerreiros as cornetas de papelão dos palhaços e bandeiras altas, os farrapos que ondulavam anunciando a maior festa do mundo.

A lona estava toda cheia de remendos, e também os leões, aposentados leões; mas a lona era um castelo e os leões, os reis da selva. E uma senhora rechonchuda, brilhante de lantejoulas, era a rainha dos céus, balançando nos trapézios a um metro do chão.

Então, Luz Marina deciciu tornar-se acrobata. E saltou de verdade, lá do alto, e em sua primeira acrobacia, aos seis anos de idade, quebrou as costelas.

E assim foi, depois, a vida. Na guerra, longa guerra contra a ditadura de Somonza, e nos amores: sempre voando, sempre quebrando as costelas.
Porque quem entra no circo Feruliche não sai jamais.
(Eduardo Galeano)

quinta-feira, setembro 15, 2011

Nossa Senhora da Flor Roxa. Rosai por nós.
Assim na vida. Como no chão.
A primavera de cada ano. Nos dai hoje.

Alice Ruiz

sexta-feira, setembro 02, 2011

A primeira vez que entendi


A primeira vez que entendi do mundo
alguma coisa
foi quando na infância
cortei o rabo de uma lagartixa
e ele continuou se mexendo.

De lá pra cá
fui percebendo que as coisas permanecem
vivas e tortas
que o amor não acaba assim
que é difícil extirpar o mal pela raiz.

A segunda vez que entendi do mundo
alguma coisa
foi quando na adolescência me arrancaram
do lado esquerdo três certezas
e eu tive que seguir em frente.

De lá pra cá
aprendi a achar no escuro o rumo
e sou capaz de decifrar mensagens
seja nas nuvens
ou no grafite de qualquer muro.

Affonso Romano de Sant’Anna

Angústia

Queremos saber o que vão fazer com as novas invenções.
Queremos notícia mais séria sobre a descoberta da antimatéria
e suas implicações na emancipação do homem das grandes populações.
Homens pobres das cidades, das estepes dos sertões.
Queremos saber, quando vamos ter raio laser mais barato.
Queremos, de fato, um relato, retrato mais sério do mistério da luz.
Luz do disco voador.
Pra iluminação do homem.
Tão carente, sofredor, tão perdido na distância, na morada do senhor.
Queremos saber, queremos viver confiantes no futuro.
Por isso se faz necessário prever qual o itinerário da ilusão.
A ilusão do poder.
Pois se foi permitido ao homem tantas coisas conhecer
É melhor que todos saibam o que pode acontecer.
Queremos saber, queremos saber.
Queremos saber, todos queremos saber.
Gilberto Gil

Ainda com Guimarães...

“Porque a cabeça da gente é uma só, e as coisas que há e que estão para haver são demais de muitas, muito maiores, diferentes, e a gente tem de necessitar de aumentar a cabeça para o total.”

Guimarães Rosa

quinta-feira, setembro 01, 2011

Sempre que se começa a ter amor a alguém, no ramerrão, o amor pega e cresce é porque, de certo jeito, a gente quer que isso seja, e vai, na idéia, querendo e ajudando, mas quando é destino dado, maior que o miúdo, a gente ama inteiriço fatal, carecendo de querer, e é um só facear com as surpresas. Amor desse, cresce primeiro; brota é depois."

Guimarães Rosa


quinta-feira, junho 02, 2011

INVERNO

Coroada de névoas, surge a aurora por detrás das montanhas do oriente; Vê-se um resto de sono e de preguiça nos olhos da fantástica indolente. Névoas enchem de um lado e de outro os morros tristes... A custo rompe o sol; a custo invade o espaço todo branco; E a luz brilhante fulge através do espesso nevoeiro, como através de um véu fulge o diamante.Vento frio, mas brando, agita as folhas das laranjeiras úmidas...
É o inverno!(...)

Machado de Assis